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Síndrome do Vai Ver Não é Fã de Verdade

Existe uma coisa no mundo do hip hop que se chama "Street Credibility" - a credibilidade de rua, que é quando um rapper pode dizer que é mais "verdadeiro" do que outro no mundo do rap/hip hop. É para mostrar que a pessoa é mais "fã" do que a outra e tem mais autoridade para falar daquilo e que suas experiências contam mais do que a outra. Um exemplo no Brasil é a coisa entre Emicida e Nocivo, por exemplo. O Nocivo já fez várias diss tracks - músicas de ofensa - contra o Emicida questionando "A Rua é Quem" - para quem não sabe, o lema do Emicida é "A Rua é Noiz". Quando a briga por street credibility chega a níveis estratoféricos as coisas ficam complicadas, como aconteceu entre Tupac e The Notorious B.I.G - uma feud (rixa) que culminou na morte dos dois, apenas para ver quem era mais potente no rap: East Coast ou West Coast. Ou Jay-Z e Nas - que fizeram as pazes porque as coisas começaram a sair de controle, mas as músicas ainda estão aí pra ver - "Takeover" do J-Hova e "Ether" do Nas, só para você ver o nível da coisa. E isso não é uma coisa que acontece só no mundo do rap - isso está em toda nossa cultura pop, de forma bem danosa.

Uma coisa que vejo bastante em sites de cultura nerd - onde seções de comentários são filiais do inferno - é a forma como se preocupam em mostrar quem é a pessoa mais nerd do lugar. É como se apenas a pessoa que sabe o nome do terceiro produtor executivo, da esposa do showrunner e da mãe do trio principal de uma série pudesse opinar. Nesses espaços da internet você encontra pessoas que realmente gastam tempo escrevendo comentários irrelevantes e xingando por coisas que no fim do dia, não fazem muita diferença - desculpa destruir os sonhos da comunidade nerd, mas a pessoa que acabou de comprar The Black Parade e eu, fã de anos, somos basicamente a mesma coisa para o Gerard Way - pagamos a mesma quantidade de dinheiro por uma coisa que gostamos. O fato de eu passar o dia inteiro ouvindo e a menina ter acabado de conhecer não faz diferença nenhuma. 

Vamos pensar da seguinte forma, muitos fãs de Sunny Day Real Estate ainda nem nasceram - e aqui, usando uma banda que já nem tem muitos fãs. É a mesma coisa com aqueles fãs chatos de Beatles e coisa do tipo - "Beatles melhor banda do mundo" - a maior parte deles nem existia quando os Beatles se separaram, os fãs "de verdade", que estavam lá na época em que Jonh, Paul, Ringo e George lançaram seus discos, deveriam estar absurdamente irritados com você, jovem barbado que fica aí se mostrando como compêndio ambulante sobre os garotos de Liverpool. É a mesma coisa com quadrinhos, metade do fandom não estava lá quando The Dark Knight foi lançado e nem estava lá quando Watchmen saiu, mas hoje pagam como se fossem os mais entendidos de tudo. Isso já começou a te lembrar algum fã de Game of Thrones que agora fala: Eu já tinha lido os livros muito antes de todo mundo, o povo só conhece por causa da série.

Cada um é um fã de sua própria maneira e curte da forma que lhe traz mais prazer. Se para pessoas como eu significa gastar horas na internet, wikipedia e livros pra saber tudo sobre meus ídolos - seja que a moça do Bikini Kill namorou com Kurt Cobain, que Kurt não escovava os dentes e preferia comer maçãs - isso é coisa minha. Uma pessoa pode só ouvir o Nevermind e ficar muito de boa sobre isso, sem mergulhar no fandom e debater por horas, escrever fanfics e discutir o uso de um violão elétrico num show unplugged fazendo cover de Bowie. A forma como uma pessoa consome alguma coisa, não deve servir de referência sobre a forma como outra pessoa escolhe consumir essa mesma forma de arte ou coisa parecida. O que tem se tornado um problema frequente nos fandoms brasileiros e no mundo nerd - lembram quando o Michael B. Jordan foi escolhido como Tocha Humana, aquilo é só degustação do mundo nerd. Vou colar aqui algo que tirei da seção de comentários do site Omelete - com seus erros e tudo, exatamente como a pessoa postou:

"Que péssima mania de chamar esses filminhos de adolescentes de "saga", quando esses caras irão aprender que saga é Star Wars, Star Trek, Indiana Jones... Crepúsculo, Jogos Vorazes e agora esse devem ser chamadas apenas de franquia mesmo ou no máximo série... Apesar do significado da palavra em si, devemos considerar a grandiosidade que simbolicamente a palavra representa, e ao meu ver ser dada as grandes franquias e não a um amontoado de livros cuja adaptação cinematográfica é tão superficial e esquecível quanto os mesmos".

Por aí você já vê que as pessoas pautam o que é bom e ruim de acordo com o que elas pensam que é bom e com o quanto elas são fãs de alguma coisa. Se eu gosto de Star Wars, isso merece ser tratado assim, se eu não gosto de tal coisa, ela deve ser tratada de outra forma. É uma forma de pensar bem arrogante e entorpecida - para não usar outra palavra. Então, temos o outro problema do meio, a forma como fãs de alguma coisa tratam mulheres e como eu tenho a impressão de que o mundo nerd não é um lugar seguro para elas e para quem não se enquadra no padrão do que o fandom julga como certo. Basta pensar no mundo dos games, em como existem os caras que falam que meninas não são fãs de verdade, ou que estão lá só para chamar a atenção com seus cosplays - diz o cara vestido de elfo. Ou sobre como qualquer menina é tratada quando vai jogar online - quero saber se alguma menina que joga online não recebeu um "mostra os peitos" ou "manda uma foto" depois que homens descobriram que se tratava de uma garota atrás do computador. Isso também se aplica no mundo dos animes, toda vez que fui num evento de anime ouvi alguém falando: Aquela menina nem curte anime, só veio aqui com cosplay de pouca roupa para se mostrar. Isso é comum, muito comum no mundo nerd - e depois eles reclamam que meninas não chegam perto ou que são excluídos.
Um exemplo que aconteceu comigo algumas semanas atrás. Foi durante a Bienal de BH, eu havia acabado a sessão de autógrafos de "Rani e o Sino da Divisão" e decidi andar com a minha esposa pelo evento. Eu ainda não tinha comprado o que eu queria e meus amigos escritores ainda demorariam um pouco para começar suas respectivas sessões no stand da Editora Gutenberg. Assim, a gente saiu de lá e eu decidi passar no stand da Devir para procurar um novo exemplar de The Umbrella Academy, porque o meu se perdeu há anos. Quando entramos nos stand da Devir vimos quatro caras que olharam para a gente como se fossemos carne, o que só piorou quando a gente parou em frente a uma prateleira com livros de RPG à mostra - um breve momento em que a gente lembrou de quando jogávamos RPG na adolescência. Um dos caras veio voando até a gente, numa das coisas mais nojentas que já vi e olhou para a minha esposa já dizendo: "Uma menina que joga RPG". E eu pensei que o cara fosse literalmente babar em cima da gente. O fato é que nem ligamos para o cidadão e saímos de lá o mais rápido possível. É por coisas assim que muita gente não sente que o mundo nerd é um lugar saudável e que muitos de seus representantes não passam de criaturas assustadoras com uma camisa preta desbotada de metal e que só fica no quarto assistindo Hentai e sendo "Hue Hue BR" em comentários de site. São as mesmas pessoas que tratam meninas como objetos e que, em alguns casos, seguem adiante para produzir materiais assim, criando um círculo vicioso.

Acho que o fandom de cultura pop brasileira precisa começar a amadurecer rapidamente, caso contrário continuaremos reproduzindo os piores comportamentos, as piores características e ninguém vai poder reclamar quando a sociedade disser: "Tudo um bando de nerd punheteiro".



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